Alice não se recordava de ter pego numa fita de VHS em toda a sua vida. Talvez quando criança, na casa de algum parente ou amigo dos pais, talvez. Era o tipo de objeto que estava presente mais nas lembranças curiosas dos adultos do que no mundo material. Mesmo assim, ela conhecia bem os efeitos que aquele pequeno e ancestral monolito de plástico escuro, advindo das sombras do milênio passado, deixava nos vídeos que eram gravados nele: o filme que baixara fora originalmente gravado em fita magnética, naquele formato de tela mais quadrado, e depois convertido para algum formato mais moderno. Assim, as cores estavam alteradas, a definição da imagem pedia um pouco da boa vontade de quem assistia, o som tinha chiados, estalos e tendia ao mono, e, por fim, uma fauna própria de artefatos de imagem gerados pela cópia da cópia da cópia sambando com a desmagnetização tinha adotado aquele arquivo como habitat.
Assim mesmo, a jovem estava ansiosa para assistir. Pelos comentários das comunidades, "O Conservatório - parte I" prometia demais um genuíno filme de terror old school, o puro suco da nostalgia de uma época que ela não viveu. Prometia tanto que fizera um baldão de pipoca, fechou as cortinas, clicou duas vezes o ícone na área de trabalho do computador - que era antigo, mas que conseguia fazer o básico essencial: baixar gigabytes dos rincões mais suspeitos da internet e reproduzir qualquer formato de vídeo sem xingar muito sua dona - para assistir e apagou as luzes.
Se aconchegou, apertou F11 para maximizar, pôs a seta do mouse num canto da tela (sumiria logo) e se tornou una com o filme, a poltrona e o crec-crec da pipoca sendo mastigado.
"No princípio eram as trevas.
Elas eram perfeitas e aconchegantes..."
Logo os créditos iniciais surgiam na tela junto com a imagem de uma jovem humana se aproximando de uma suspeita construção antiga em alguma cidade pequena. E, enquanto isso, atrás de Alice alguns de seus bichos de pelúcia (ursinhos, personagens de anime, versões fofas de entes lovecraftianos e afins) se mexeram na estante, e o ser que se escondia entre eles se posicionou para assistir também, enquanto se alimentava cuidadosamente das energias de satisfação emitidas pela adolescente...
"Toda a criação era embalada pelo manso pulsar do coração do mundo."
De imediato, o ser reconheceu a natureza do enredo exibido na máquina: era a do tipo que mostraria perigos ocultos em lugares suspeitos e de predadores que se misturavam ao ambiente para capturar sua presa. Era um padrão bastante repetido em todos os mundos, contado desde cedo em todas as espécies feitas de histórias. Nessa, e na maioria das versões, o perigoso é o diferente e o mal é predador que só segue a sua natureza no ciclo da vida.
Ele sabia que agora ele próprio era o mal, o perigo. Aquele com o poder de trazer a dor e extinguir vidas.
Não sabia quando deixou de se importar com isso, ou qualquer outra coisa.
Não, não foi por causa dela, ou dos outros.
Entediado, fechou os olhos em mais uma cena de perseguição numa velha floresta mal-enquadrada e recitou a ladainha de seu povo, um resgate da atrofiada capacidade de sentir...
"No princípio eram as trevas.
Elas eram perfeitas e aconchegantes, um cálido abraço em dia frio.
Toda a criação era embalada pelo manso pulsar do coração do mundo.
E então,
veio a luz,
E verbo, o rasgar.
Os anjos, o fogo e a dor.
Famílias foram separadas. Vilas e cidades, levadas ao chão.
Povos foram levados, espalhados como fuligem na tempestade.
Séculos de conhecimento acumulado conheceram o escárnio antes de vir o aniquilamento possibilidade de recuperação.
Nativos das sombras, nos tornamos uma sombra do que éramos em nossa silenciosa glória."
Isso foi há gerações atrás, mais do que era capaz de contar. Apesar do Rasgo gritar eternamente nos céus escuros, e dos perigos alados sob ele, seu clã tinha conseguido fugir e se estabelecer em uma terra distante, feita de conceitos esquecidos e quase estéreis. Mas, como não um grupo exigente, se mantiveram vivos ingerindo os sonhos das próprias trevas, sonhos de um dia elas voltarem a ser uma...
Uma pulsão de energia de satisfação o traz de volta ao quarto e ao filme: a personagem, fugindo de vozes no escuro, se joga no que parece ser um fosso circular no solo irregular e forrado de folhas secas. Providencialmente o chão lá embaixo é nojento, porém fofo e ela se levanta sem um arranhão sequer.
O ser escondido atrás das pelúcias de Alice se identificou com a cena, foi uma velha porta esquecida que o jogou em um turbilhão de dores.
A sua terra natal tinha ruínas, onde os mais velhos cantavam histórias. E estas histórias diziam que na época das lendas que as lendas citavam, ali havia uma poderosa metrópole, capaz de subjugar os anjos, os humanos e os que vivem abaixo destes. Ele não acreditava nisso, ali eram restos de uma cidade qualquer, provavelmente extinta na primeira revoada dos abençoados que os jogaram nesta maldição. As construções e as pedras das ruas eram vulgares, até as parcas plantas que cresciam ali eram desprovidas de graça. Não haviam colunas enfeitadas, estátuas ou chafarizes, tão comuns nas narrativas sobre o passado perdido.
A triste verdade é que seu povo estava transformando a própria história em sonhos, que consumiam em seguida.
A última vez que esteve lá, colhia com outros do seu povo as migalhas que os alimentariam por mais uma temporada. Eram quase três dúzias naquele campo cinzento, contando também as crianças, que estavam ali ajudando e brincando ao mesmo tempo, sob o olhar de todos. E foi assim que a sua mais nova e o coleguinha dela encontraram a pequena tampa redonda no solo, oculta pela areia cinzenta, feita da pedra de ideias imutáveis, sem inscrições ou enfeites.
Deliberaram brevemente o que fazer: era claramente uma porta e ela estava longe demais da obscenidade luminosa nos céus para ter algo com ela. Logo, alguém lembrou que os antigos tinham despensas abaixo de seus lares, para se alimentarem confortavelmente quando quisessem. Essa memória apetitosa, em um contexto em que a fome era uma companheira irritantemente constante, os inebriou com aquele sonho e ele, junto com os mais fortes, incentivados pelo coro das crianças em expectativa das delícias, se juntaram para retirar aquele pesado tampo do chão.
Pensando agora, depois que tudo ocorreu, seria fácil acreditar que os sinais de todos os problemas estavam nítidos e que foram imprudentes ao ignorá-los.
Talvez.
Estavam se arriscando à gases doentios, animais peçonhentos, armadilhas ou apenas à decepção de tanto esforço dar em nada.
E o que conseguiram foi: vento.
Ao menos no começo...
Assim que a primeira fresta se fez, trouxe de dentro um vento gentil mas forte, que conseguiu levantar a tampa para o alto e que levou todos os que estavam mais próximos, junto com ele, e os pôs delicadamente bastante atrás de todos os outros. As crianças foram tomadas pelo espanto por um momento, mas imediatamente acharam graça o desajeitado voo que os grandões do grupo fizeram por cima delas. Os adultos que não foram levados ainda digeriam o ocorrido, alguns se aproximaram do objeto circular - que agora girava verticalmente à alguma altura de onde estava encravado anteriormente -, assim como a maioria dos que foram gentilmente postos para longe. Os mais prudentes pegaram suas crias e se moveram em busca da segurança em um algum lugar mais afastado. Em pouco tempo estes se tornaram os mais distantes de todos e do objeto que flutuava antinaturalmente, para logo descobrirem que seriam as primeiras vítimas: uma larga muralha de escritos luminosos se desenhou em torno de todos, se fechando num círculo perfeito composto de todos os alfabetos do multiverso. Este, assim que se completou, começou a apertar-se em direção à porta.
Naquele momento, ele estava de costas para o que acontecia, mas assim que ouviu os primeiros gritos de pânico desaparecerem incompletos, se voltou para trás e, horrorizado, testemunhou os mais precavidos de seu povo serem transformados em pontos de luz quando entravam em contato com a muralha maldita. No pavor, tinha se esquecido do que lhe era mais caro, e só lembrou-se de seus filhos quando berraram por socorro, trazendo de volta sua atenção ao mundo prático. Apressou-se para tirá-los de tão longe dele e tão próximos da morte, fracassando. Dolorosamente, presenciou a do meio ser transmutada numa porção de pontos amarelos que voaram aos céus e também não chegou a tempo de salvar o mais velho, com o pé machucado pela fuga, chorar que não queria morrer antes de se tornar pequenas luzes azuis que choveram no chão cinzento como pequenas flores levadas ao vento.
E a mais nova, onde estava a mais nova?
Onde não deveria estar, longe dele e cada vez mais junto do perigo, brincando com as mórbidas luzes, restos de seus amigos e parentes, que voavam em torno dela antes de desaparecerem para sempre.
Gritou por seu nome.
Até hoje se lembra da sua criança olhando para ele como se lembrasse de algo bom e, no instante seguinte, a muralha a converter numa nuvem de pontos rosa que voaram na sua direção. Antes que desaparecessem por completo, tentou pegar um deles e não olhou para trás, correu para o centro de tudo e, sem pensar e com mais nada a perder, foi o primeiro a se jogar dentro do buraco aberto com a ajuda dele mesmo.
Acordado, ele despertou da distância que seus pensamentos o levaram: a personagem gritou, assustando a jovem e ele sentiu o pulso de energia vindo dela. Haviam tochas e homens de capuz na tela, cercando a moça presa no chão com correntes nos seus braços e pernas.
Uma campainha tocou.
A moça continuou atenta à tela.
A campainha tocou outra vez.
- voufingirquetemninguémemcasa - murmurou, com zero disposição de sair da frente da tela na melhor parte.
Os homens de capuz se afastaram para dar passagem à um homem alto, de roupa bastante elegante com medalhas e capa, de profundas olheiras e caninos pontiagudos. "Agora que não atendo ninguém, nem minha bexiga", ele ouviu.
O mundo fica azul. A moça desapareceu. Ele ouviu uma porta ser aberta longe e se moveu para mais atrás na estante e fica imóvel, assistindo, tentando se ocultar. Outra porta se abriu, revelando a jovem de cabelos escuros que enfrentara mais cedo, trajando as roupas dos que vem do mundo além do Rasgo.
- Alice?
E estava acompanhada do pequeno animal:
- Já disse, a magia de isolamento retira todos os que não possuem magia, para protegê-los.
- Assim mesmo, me sinto invadindo a casa da minha amiga. Tem certeza que ele está aqui, Coração Ígneo?
- Sim, e está na mira, Mestra.
Ele não tinha outra saída: mesmo ainda cansado, explode o quarto, a casa e todos dentro dela.
Uma pena, ele queria ter visto o filme até o final.