Fogo.
As labaredas tomaram todo o quarto e o corredor, a casa toda.
Vento.
Tijolos e terra viraram pedregulhos, madeira e tecido foram vertidos em chamas. Tudo se espalhou para todas as direções, repentinamente impulsionados por um brutal deslocamento do ar.
Luz.
O sol começava a descer vermelho no horizonte e, após a fumaça e a fuligem baixar, os seus cansados raios chegam até Michiko, que percebe que não havia mais um teto ou paredes onde antes era a casa da amiga de escola. Nem o chão estava onde deveria estar: agora ela estava suspensa no ar, alguns palmos acima de cratera que estava no lugar antes ocupado por uma residência térrea.
- E-eu estou... viva?
E sem um arranhão, marca de fuligem ou fio de cabelo fora do lugar. Ao seu lado, uma mini-capivara (macho, como se referia) (e, claro, a moça notou que havia um bigulin sob a pelagem do animal pelado) assistindo ao desastre com aquele olhar de "nunca se impressionar" que a espécie tem.
- Claro. Te disse que o primeiro propósito da magia é a proteção de quem a possui.
- Uau!
- Quê?
Poucas horas atrás, ela estava sentada no chão de seu quarto com o bicho falante, que acabara de se jogar em seu colo:
- Precisamos conversar!!
- Sim! - ela se movimenta para tirar o animal de suas pernas, que sai - O que é você? O que está acontecendo, afinal?
A capivara a encara com aquele narigão, sério.
- Me ouve, é urgente! O seu mundo está em perigo e... ei?! Por que você pôs o dedo no meu nariz?
- Desculpa, queria saber se você é real.
- ...E tá satisfeita agora?
- Desculpe... Foi mal. Tá tudo doido de repente...
- Tuuuudo bem - o ele anda enquanto olha para a menina, dá um pigarro ensaiado e continua - melhor começar do começo: meu nome é Poika...
- O meu é Michiko.
- Eu sei, você me disse teu nome quando perguntei se você tem magia.
- Ah, então era você mesmo! Tinha hora que fiquei em dúvida se era você ou aquele capirotinho lá....
- Não, não - ele nega chacoalhando a cabeça nariguda - aquele era Virhe, um fugitivo. Ele se aproveitou da confusão e da minha falta de energia para se passar por mim e tentar te dominar.
- Ah, tá...
- Você não acredita em mim?
Ela o encara, séria.
- Olha... eu não sei mais em que acreditar. Até eu voltar da escola... tudo fazia sentido: eu ia estudar de manhã, ajudava minha família no restaurante, dormia a noite, aí de manhã ia pra escola de novo... sabe? Uma vida normal, uma rotina que todo mundo segue e que fazia sentido, tipo uma lista de atividades e... e... agora tem chuva de gafanhotos esmagando tudo, uma capivara falante, uma joia falante, bichos tentando me matar...
- ...e você tem muito mais magia que eu, sabia?
- E isso, mágica! Meu Deus, eu nem sei se acredito em Deus e agora... e agora eu saio voando e atiro luzinhas com uma roupa frufruzada... - ela para pensar e diminui o tom de voz, ainda com uma nota de desespero - isso aconteceu mesmo?
- Sim, Mestra.
- Obrigada, Coração Ígneo.
Michiko para tudo e olha para quem ela acabou de responder - uma joia em formato de livro - , incrédula com a naturalidade com que ela aceitou esse fato.
- E você não voou, Michiko - Poika retoma a conversa - não ainda.
Silenciosas asas em seus pés, como se fossem de borboletas, a fazem subir alguns metros no ar com a naturalidade de uma caminhada.
- Que estrago que ele fez... Tem certeza que ninguém se machucou, Poika?
- Não se preocupe, o campo de isolamento que convoquei protegerá tudo. Nada que for destruído aqui dentro será destruído no mundo real.
Subiram mais um tanto. Michiko ainda tinha receios de olhar para baixo, queria evitar os pensamentos dela se esborrachando no asfalto, nos telhados, nos gramados...
- Será que ele foi longe? Será que fugiu?
- Duvido. Se Virhe tivesse escapado de meu campo, eu sentiria.
Eles dão algumas voltas, mas não se afastam muito de onde ficava a casa de Alice. Era estranho existir naquele mundo vazio de seres em movimento, não vira sequer formigas no chão e não haviam pássaros para disputar espaço nos céus com ela e Poika.
Baixou o olhar. A que altura ela estava? Cinco? Dez metros? Voar também deveria ser estranho, só que estava se tornando incomodamente normal para ela. Assim como estava achando de boas perseguir e capturar alguém que tentou enganá-la e a esmagar com toneladas de insetos.
Ela tinha um mau pressentimento sobre isso.
- O-o quê você quer de mim?
- Ajuda. Um monstro escapou... houve uma falha na contenção e...
- Aqueles bichos vieram pra cá? É isso?
- Sim. Não. Mais ou menos: só Virhe veio para este mundo. Mas a presença dele não é natural aqui, sabe?, e isso cria interferências... pessoas e bichos ficam irritados, doentes, as coisas estragam, pesadelos se tornam mais frequentes, esse tipo de coisa, sabe?... e às vezes estas interferências ficam sólidas. E como ele está por aqui faz um bom tempo...
- "Interferências" seriam aqueles bichos babando ácido que quase me devoraram?
- Isso! Mas você não sabia que tinha magia e...
- E.... pera, é muita informação de uma vez só. T-tem mais daquilo por aí?
- Tem.
- Muitos?
- Eu diria que teu bairro está empesteado.
- Mestra - Coração Ígneo notifica - Há pelo menos dois seres se aproximando em grande velocidade. O nível de poder individual é de pelo menos cento e vinte, maior que os anteriores.
- "Nível de poder", é? Qual o meu?
- Mais de nove mil, Mestra.
- Suspeitei desde o princípio... - suspira - ESCUDAR!
Uma redoma de luz surge para protege-los. E por momentos demais, ninguém mais além deles mesmos aparece.
- Ué....
Bong!!
Algo irrompe da rua e se choca com a magia protetora, jogando bola energética para o alto - com Michiko e Poika dentro, numa parábola que a moça interrompe assim que se recobra da surpresa. Era um ser do tamanho de uma van, com um corpo cilíndrico verde varejeira, circundado de anéis que faziam o forte barulho de insetos voadores. Em sua extremidade mais alta, ostentava uma cabeça humanoide, com dois exagerados olhos vermelhos, cercada por uma comprida juba dourada. Sobre a cabeça havia uma espécie de coroa formada de moscas, flutuando.
Na outra ponta do corpo, uma cauda escorpioide balançava, impaciente por uma vítima. Não haviam pernas, o monstro se sustentava no ar pelo poder de sua própria monstruosidade e dali avançou para onde a dupla estava.
Bong!!
- Ai!!
- Reage, Michiko!
- Faz você então! - disse brava, mas apenas por dizer.
Mal pensou nela mesma descendo ao solo e Coração Ígneo brilhou fracamente. Não entendia direito a sua relação com a joia - agora na ponta do bastão - mas imediatamente seu corpo suspenso no ar fez um movimento em forma de arco em torno da ameaça e se pôs gentilmente de volta ao chão. Apontou o cajado para o louva-a-deus do mal e pôs toda sua voz num "READIR!!".
Como antes, uma pesada esfera de luz cai do cristal, e Michiko assiste ela correr o chão até abaixo do bicho feio, e se jogar para o alto para capturar a vítima... mas sua magia é rebatida pelo ferrão da criatura, explodindo em letrinhas catódicas ao chocar-se em um muro. A besta se move e antes do último carácter luminoso se apagar no ar, se choca com a calçada e se põe cara a cara com Michiko. Ela vê o oponente abrir a boca e revelar seus dentes, fileiras de agulhas ósseas, esguichando ocasionais jatos de veneno.
A mini-capivara continua:
- É, eu... eu não vou conseguir sozinho. Achava que ia ser mais fácil... e você parece ter mais poder do que o necessário!
- Oi, eles quase me devoraram! Você entende? E quase fui esmagada por gafanhotos e também teve... eeei!! - sem dificuldades, Poika se põe em duas patas traseiras, move rapidamente as dianteiras para trás, do lado direito e as joga para a frente: uma bola de flamas rubras surge por entre suas palmas - o que você está fazendo??
- Usando magia pra mudar tuas ideias. BRASIL!!
E Michiko é atingida pelo fogo.
Ela dá um berro e, instintivamente, empurra o monstro esmeralda e acaba se lançando pra trás. E seu pensamento aparece por escrito no livro que sempre flutua ao seu lado:
"Por que eu aceitei essa tarefa mesmo?"