Ainda assustada e confusa, Michiko fez quase que automaticamente o que faria em circunstâncias normais: rumou direto para casa, abrindo o portão e a porta sem perder tempo algum. Não queria se demorar do lado de fora e ser vista carregando um bicho.
E estava apertada.
Alguns minutos depois, saia do banheiro com a bexiga mais leve e cabeça cada vez mais pesada de tantas perguntas se acumulando.
"O que aconteceu?" era a menor das preocupações: seus pais estavam bem? Eles a viram sumir ou saiu andando a esmo ignorando as pessoas em volta? Não sabia o que esperar e nem como reagir, ou explicar. E o que faria com aquela... capivara desmaiada em sua cama? Foi uma ideia inteligente trazer aquele bicho pra seu quarto??
Sentou-se no chão e pegou a joia, agora tinha tempo de dar alguma atenção à seus detalhes: era um pequeno aro dourado, de uns dois dedos de largura, com vários escritos estranhos no lado de dentro e de fora. E o retângulo inscrito nele na verdade era uma miniatura de livro bem grossinho, aparentemente feito de alguma pedra em tom cinza escuro. Passou os dedos para sentir se tinha algum relevo oculto aos olhos, mas nada, era perfeitamente liso.
Pôs o objeto na frente de seus olhos e, insegura, fez algo absurdo como se fosse a coisa mais normal do mundo: falou com a joia
- Coração... Ígneo?
- Sim, Mestra?
Michiko se joga para trás e quase que deixa o objeto cair no chão. Ela estava mais assustada do que admitia para si mesma.
- CoraçãoÍgneo... o que... o que foi tudo isso que aconteceu?
- Meu antigo mestre te cedeu o comando de meus sistemas, e a partir de então sou a assistente na composição de suas magias.
- Ahnn... - não entendera exatamente o que foi dito, mas como já tinha assistido e lido histórias, desconfiou que tinha uma ideia do que estava acontecendo. Ou ideias Todas meio absurdas, mas... podia ser... como..?
- MICHIKOOO!
O.O!!
- TE PUNIREI EM NOME DA LUAna! - irrompe uma voz de moça alta e loira de longos cabelos na porta do quarto.
- AAHHH!! - no susto, se assustou e jogou a joia para debaixo da cama para depois ver quem era:
- L-Luana?! A-ssim você me assusta!
- Hihi, a ideia era essa :P - ela entra - Estava dormindo no chão, Mi?
- Não, não, o que você veio...
- Teus pais me mandaram ver se estava legal, você saiu do restaurante meio, sei lá, avoada, parecia doente (e interrompe a conversa para mandar um áudio no celular "ela tá bem, dona mãe da Michiko").
- Acho que eu estava cansada, ou pressão baixou... - disse em meia-voz desculpas aleatórias que desconfiou que Luana não estava prestando atenção, no fim das contas. De qualquer forma, não se sentia segura em contar o que realmente aconteceu, ainda mais para a amiga. De súbito, se lembrou da capivara e vira o pescoço para onde foi deixada num repente tão repentino que quase que suas vértebras estalam.
- Aaaaaaaiii, que fofo!! - Luana se jogou no colchão para onde ele estava - quem te deu essa pelúcia? Não me lembro dela <3 Quero uma também, amodoro capivaras!! <3<3
- Ela é... tava no armário guardada - pega o bicho, que definitivamente era de pelúcia, e finge cheirar - ainda tá com o cheiro da naftalina, tá bem fraco, mas dá pra sentir.
- É muito fofa!
- Eu sei^^""
- Veio do Japão?
- Não, não! Comprei no shopping, sabe...
- Ah, tá... Mi.... posso pegar água? Vim correndo ver como você está...
- Pode sim, você é da casa.
Assim que Luana saiu e ouviu-se os passos dela escada abaixo:
- Ela foi embora?
...a capivara de pelúcia deixou de ser de pelúcia, e quase é jogada para longe pela garota que a segurava.
Michiko respondeu com um enfático não com a cabeça, e vê o cavídeo voltar a ser um pelucídeo em suas mãos.
- Voltei! Ahn... você não tava no celular, Mi?
- Não, ué.
- É que ouvi uma voz, achei que fosse.
- Impressão tua.^^
A visita se sentou no chão, ao seu lado. As duas com as costas apoiadas na cama.
- Mi....
- Que foi?
- Estou confusa.
- É... acho que eu também.
- Éééé? Você também está amando?
- Não, né.
- Ah, que sem graça.
Ser perseguida por monstros, encontrar uma capivara (e uma pedra) falante, quase ser atropelada por um caminhão e uma chuva infinita de gafanhotos. É, deve ser sem graça quando você só deseja romance, uns beijinhos e o aumento da temperatura entre dois corpos.
- Eu só queria sossego - Michiko soltou uma indireta pra visita, com direito a um olhar torto, mas a amiga de olhos azuis está prestando atenção no infinito apenas (no caso, o infinito era representado pela parede bege do corredor).
- E eu quero agitar minha vida - Luana deu um soco na palma da própria mão direita - mas, Mi, não sei se devo, aiai...
- Você não está falando coisa com coisa, percebe?
- É o amor.
- Quem é, o loirinho da loja de games?
- Não, o filho do pastor.
- O bonitinho de terno que distribui rosas antes do culto de domingo?
- É, é!! Ele não é lindo? <3
Michiko se virou ajoelhada para o lado de Luana, pegou nos pulsos dela, junta as mãos, palma a palma e diz em tom solene:
- "Livrai-nos do mal, amém".
- Ei, credo.
- Sai dessa, Luana. Até eu sei que isso é cilada.
- Eu.... eu não falo mais com você sobre isso =u_ú=
- "Oh, glória".
- Mas, sério...
- Sou séria, Lu.
- Você nunca me apoia, Michiko.
- Nem vem, apoio sim!!
- Então domingo você vai comigo na porta da igreja para me ajudar a falar com o menino??
- QUÊ?? N-não!!
- To falando, você não... ninguém me... - ela começou a soluçar e pequenas lágrimas se formavam nos cantos de seus olhos claros.
- Você não precisa de mim para isso.
Luana não respondeu, está com os braços sobre a cabeça, que está encostada nos joelhos. O barulho de choro baixinho se fez presente e Michiko se pergunta como ela podia ser tão criança com quase quinze anos? E, sinceramente, o que ela faria além de ficar parada com cara de idiota do lado dela na frente de um monte de gente religiosa...
Aiai, a programação de domingo, na televisão, no fim da tarde era chata mesmo.
- Ok, eu vou... mas te largo e volto pra casa logo, certo?
- Jura? Ah... - celular toca - alô? Mãe? Tá, to indo. Obrigada, amigaaaaaMichikoooo. Tchau!!
E Luana foi embora correndo, deixando a amiga sentada no chão, esmagada por um abraço.
- Por que o celular não ligou antes, hein? - ela disse olhando para o céu, representado naquele momento pelo teto - uff!! - algo pesado caiu sem aviso em seu colo.
- Ela foi embora. Precisamos conversar!!
Encarando-a nos olhos, era a capivara, agora em forma de capivara.