Alan Moore's on writing for Comics (sobre escrever para os quadrinhos - 3ª parte) parte 1 • parte 2 • parte 3 Agora que temos a idéia, a estrutura, a abordagem narrativa, o ambiente e os personagens discriminados, suponho que se deva pensar também em propor o enredo (embora, como você já deve ter deduzido, se é que você já leu bastante dos meus trabalhos, eu quase não posso me incomodar com esta formalidade). Afinal, que diabos é um enredo? Que cara tem? O enredo não é o ponto principal da história ou sua principal razão de ser. É algo que está ali mais para realçar a idéia central da história e os personagens que se envolverão nela do que para dominá-los e forçá-los a se encaixarem em suas limitações. Enredo é a combinação ambiente-personagems apenas com o elemento tempo acrescentado a eles. Se a combinação de ambiente e personagens pode ser chamada de "situação", então , enredo é uma situação vista em quatro dimensões. Usando o exemplo que apanhei do excelente "Relatório sobre a Probabilidade A" de Brian Aldiss, pensemos numa coisa diferente das histórias em quadrinhos para termos uma outra perspectiva da idéia. Consideremos um pintura – em particular, "O Pastor Mercenário", do pré-rafaelita William Holman Hunt. Neste quadro, vemos uma jovem nos encarando em primeiro plano, em meio a uma bonita e luminosa paisagem pastoral, banhada pela luz dourada do poente. Agachado ou ajoelhado, logo atrás dela, vemos um jovem, o pastor do título. Ele está com um braço erguido por trás dos ombros dela, como se estivesse a ponto de estabelecer uma intimidade física, envolvendo-a num abraço. Contudo, no momento retratado, sua mão ainda não a tocou. Presa nas palmas da mão, ele traz uma pequena mariposa "esfinge-caveira" (nota do tradutor: inseto que tem estampada em suas asas a figura de uma caveira). Tanto a expressão do belo pastor como a da jovem são ambíguas. O pastor parece lascivo e a moça parece empolgada. Vista sob outra luz, a expressão dele é um pouco mais sinistra, enquanto a dela é a de alguém sufocada pelo susto. Atrás do casal, nos campos ingleses banhados em ouro, um rebanho de ovelhas vagueia sem rumo e sem proteção enquanto o pastor passa o tempo com a bela jovem sobre o relvado logo acima do pasto. O pastor parece sorrir ao se preparar para mostrar o inseto, e ela não parece incomodada com sua aproximação. As ovelhas pastam, a mariposa se agita, o momento está suspenso, sem passado ou conclusão. É apenas um segundo, extraído de um continuum sobre o qual não sabemos mais nada. Não sabemos nada sobre o passado deles – onde o pastor cresceu ou mesmo onde passou a noite anterior. Não sabemos se a mulher fora até lá por acaso ou se havia combinado de se encontrar com ele antes. De seu futuro sabemos menos ainda. Quando ele mostra o inseto, ela se encanta ou se assusta? Farão amor ali mesmo, ou apenas conversarão ou brigarão? O que acontecerá com as ovelhas, deixadas sem guarda? Com um olho no simbolismo aparentemente sinistro da esfinge-caveira, existirá algo mais ameaçador implícito na cena? Não algo necessariamente melodramático como o pastor estar prestes a estrangulá-la, mas, talvez, uma menção à morte e à maneira como dissipamos a essência da vida? Este momento eterno que vemos, aprisionado na tela, é o começo de um relacionamento, ou o final? A beleza de uma boa pintura está no fato da mente e dos sentidos poderem vagar eternamente nela, seguindo seu rastro e percorrendo seus caminhos neste lugar onde o tempo está suspenso. "O Pastor Mercenário" nos expõe a situação. A situação não muda, mas nós nos deslocamos dentro dela, apreciando seus sutis meandros em perspectiva e significado. Se, então, acrescentarmos a dimensão tempo a esta situação, a obra de arte fica completamente alterada. Ao invés de apresentar infinitas possibilidades, elas seguiriam uma única rota definida. A composição dos eventos ao longo desta rota definida. A composição de eventos ao logo desta rota é o enredo. A moça na pintura nota a mariposa e fica curiosa e também um pouco assustada. Trava-se então um diálogo entre o charmoso pastor e a moça, que está fascinada por ele. Fazem amor depois de libertarem o pequeno inseto. Depois disso, descobrem que o rebanho foi roubado ou se perdeu neste meio tempo. Em vez de enfrentar a fúria do raivoso fazendeiro que o empregara para cuidar do rebanho, o impulsivo servo decide fugir da região e procurar emprego em outro condado. Depois de algumas semanas a moça percebe que está grávida. Seu pai e seus irmãos ficam sabendo e juram caçar o pastor e dar-lhe uma escolha – ou casa ou morre - ... e etc, etc, etc. Confesso que a versão acima é uma extrapolação desajeitada e feia sem nada daquele charme, sutileza ou poesia da pintura original, mas creio que esclarece o ponto de que compor o enredo é um tipo de fenômeno de quatro dimensões, tomando tempo como a quarta dimensão. A situação retratada na própria pintura é uma representação de um mundo tridimensional que, com a adição do tempo, torna-se quadridimensional e passa de situação à enredo. Portanto, para apropriar-se do processo de criação de enredo de um modo válido, você deve tentar raciocinar quadridimensionalmente. Veja o mundo em que vivem seus personagens como um continuum com passado, presente e futuro. Veja a forma do todo, então você está mais apto a enxergar como os elementos dentro do projeto global se relacionam de modo muito mais claro. "WATCHMEN" foi criado justamente desta forma. No tempo real, a história começa em outubro de 1985 e termina alguns meses depois. Tenho todos os eventos abrangidos neste período, encaixados precisamente. Em termos mais amplos, no entanto, a história reporta-se a eventos que vão desde 1940, com seqüências individuais que se dão nos anos 40, 50, 60, 70... a impressão que temos, espero, é que um mundo com sentido de profundidade e com uma história verossímeis, junto com personagens que compartilham esta qualidade. Ao ser capaz de enxergar um período de 45 anos de história relativa do mundo onde se situa minha trama antes mesmo de tentar escrever uma única sílaba sobre aquele mundo, fui capaz de observar parâmetros de eventos e eventos que se espelhavam conceitualmente, elementos potencialmente interessantes da história e de sua narrativa que eu poderia enfatizar e trazer à tona conforme o progresso da história. Pude notar oportunidades de amarrar elementos do enredo ou da estrutura temática e apresentar um todo mais coerente e efetivo como resultado. Ainda, uma vez tendo a história e seus vários personagens planejados em profundidade, talvez se note justamente de personagens ou eventos interessantes que ocorreriam logicamente a uma certa altura e que poderiam sugerir um ou outro diálogo interessante. Estabeleça seu continuum com um formato quadridimensional – com comprimento, largura, profundidade e tempo, e então tome um único fio de narrativa que o conduza pela paisagem que você criou da forma mais interessante e reveladora possível, seja ela realista ou de um terreno mais abstrato e psicológico. Este fio de narrativa é seu enredo. Enquanto o enredo se desloca através do continuum bem visualizado que você criou para ele, você achará fácil extrair uma impressão real e agradável se desenrolando paralelamente dentro da história que você está definitivamente narrando. Um bom exemplo disto são as palavras que Jaime e Gilbert Hernandez criaram em "LOVE & ROCKETS". Nas histórias "Locas Tambien" e "Mechanics" do Jaime, temos a sensação de um único corpo de detalhes verossímeis pairando além dos limites dos quadrinhos e da própria história. Depois de vermos por vários meses "MÍSSEIS DE OUTUBRO" pichados pela cidade, descobrimos que este é o nome da banda de Hopey, da mesma forma casual que descobrimos que seu nome é "Glass" ou que sua tia, Vicky Glori (nota do tradutor: faltou o autor ler com atenção, essa aí é a tia da Maggie, não da Hopey), ganhou uma controvertida luta contra Rena Titañon. Em "Heartbreak Soup", Gilbert produziu um trabalho igualmente notável na sua descrição da comunidade de Palomar num período de quinze ou vinte anos. Observando Jesus, Heráclio, Vicente e outros crescerem e estabelecerem suas vidas quando adultos. Vemos a Xerife Chelo começar sua carreira como bañadora ("uma mulher que dá banho em homens" – nota do tradutor: pode parecer piada, mas esse tipo de serviço era comum em comunidades chicanas dos anos 50) antes de ser expulsa dos negócios pela bela Luba e obrigada a ingressar na força da lei. Em seqüências posteriores vemos com que perfeição ela assumiu sua nova vocação e observamos que ela também está emagrecendo e ficando mais atraente, enquanto Luba começa a aparentar cada vez mais fadiga e consciente do quanto sente falta da juventude e de que está perdendo a beleza. O mundo é genuíno e tridimensional. Leva quinze anos de história para percebermos que Vicente é mais complexado pela sua deformidade que aparentava originalmente ser. Observamos dois filhos de mães diferentes, ambos gerados pelo recém-falecido "jovem estraçalhador de corações" Manuel, brincando juntos durante uma comemoração pública, ao mesmo tempo que a vida adulta prossegue em função deles. Temos a sensação de um continuum completo, dentro da qual todos os elementos assumem seu próprio grau de importância e tornam-se parte vital da obra de arte total. Temos uma idéia que desejamos transmitir e um roteiro que realça e revela a idéia de maneira instigante. Compusemos os personagens para viverem a história e um mundo igualmente palpável e verossímil para abrigá-la. O primeiro passo é pegar nossa história que, presumo, foi desenvolvida com um olho em quantas páginas são disponíveis para a impressão, e ver exatamente como ela pode melhor se ajustar às limitações que temos. Como um exemplo de como funciona este processo, eu citaria o meu Superman Annual de 1985 (Super Powers #20, no Brasil) (nota do Mushi: ***ATENÇÃO, SPOILERS ADIANTE!***). A idéia foi examinar o escapismo e os mundos fantásticos dos sonhos, que incluem tempos felizes idealizados no passado e pontos desejados no futuro, onde finalmente alcançaremos nossos almejados objetivos. Eu queria avaliar como estes conceitos seriam aplicáveis e qual seria a dimensão do intervalo que separa a fantasia da realidade. Foi uma história, se preferirem, para as pessoas que eu tenho encontrado pela vida afora que se travam em algum ponto do futuro quando finalmente serão "felizes". São pessoas que dizem "se eu não tivesse casado com aquele homem ou aquela mulher, se eu tivesse continuado a faculdade, se tivesse saído de lá antes, me estabelecido, ido ver o mundo, aceito o emprego que recusei..." ou, que dizem "quando eu pagar a hipoteca, poderei aproveitar a vida. Quando eu for promovido e ganhar melhor, poderei aproveitar a vida. Quando as crianças crescerem, quando eu conseguir publicar meu livro..." São pessoas que se escravizam por sua nostalgia ou por suas expectativas, sendo incapazes de viver o presente até que ele tenha se tornado passado. O roteiro que escolhi para desenvolver esta idéia envolve a mente do Super-Homem, escravizada por um parasita telepata que insuflava uma ilusão que o coração dele mais desejava... um planeta Krypton que não explodira. Isto é parte de um roteiro sobre um inimigo alienígena do Super-Homem – Mongul – que quer o herói fora do seu caminho para que ele possa dominar o universo ou o que quer que estes tipos tirânicos normalmente aspiram. A história acontece no dia do aniversário do Super-Homem, na Fortaleza da Solidão, com seqüências simultâneas dentro de sua mente, enquanto ele se imagina em Krypton como se ele ainda existisse. No desenrolar da história, vemos que tal eventualidade poderia não ser tão feliz quanto prometia à primeira vista, levando o herói finalmente a se desfazer da fantasia. Ao mesmo tempo ele percebe que sua nostalgia por um planeta desaparecido é inútil, como de fato era, e aprende algo sobre si mesmo com a experiência. Ok... então o problema é como apresentar aquele roteiro e sua idéia principal dentro das restrições que são impostas pelas dimensões da revista, pelo mercado a que se destina, e assim por diante. A restrição mais concreta e imediata é que a revista tem quarenta páginas. Isso implica em ter que ajustar minha historia aquela precisa dimensão sem que ela pareça nem espremida nem esticada. Assim, meu primeiro passo é normalmente pegar uma folha de papel e numerar de um a quarenta, no lado esquerdo. Então esboço as cenas que já estão em mente e tento resolver quantas páginas elas consumirão. Já resolvi que desejo apresentar um contraste entre o mundo de Krypton nos sonhos do Super-Homem e a realidade de sua situação, paralisado na Fortaleza da Solidão com um fungo alienígena brotando de seu peito, se chafurdando na bio-aura do herói. Para que isso desse certo, eu precisava de fatos interessantes de desenrolando na Fortaleza da Solidão enquanto o Super-Homem está adormecido, e igualmente envolventes acontecendo simultaneamente no "mundo real". Como isto acontecia no aniversário do Super-Homem, parecia lógico que alguns de seus colegas super-humanos aparecessem – Mulher-Maravilha, Batman e Robin – como realmente viria a acontecer, e dessem margem a alguns incidentes interessantes com Mongul, que estaria cuidando de sua obra. O esquema grosseiro seria o seguinte: eles chegam, estabelecemos suas personalidades em breves lances e mostramos como reagem. Com os diálogos, permitimos que o leitor saiba que é aniversario do Super-Homem. Estabelecemos que tanto a Mulher-Maravilha quanto a Dupla Dinâmica trazem presentes – ela traz um pacote enorme, cujo conteúdo ela não revela de maneira alguma, e Batman e Robin têm uma rosa especial chamada "Krypton", especialmente cultivada para a ocasião. Ao entrarem na Fortaleza da Solidão, encontram o Super-Homem com uma estranha massa de rosas negras brotando aparentemente de seu peito. Ele está imóvel e totalmente inerte. Enquanto eles tentam descobrir o que está acontecendo, Mongul surge e revela os detalhes relevantes que faltam. A Mulher-Maravilha tenta atacá-lo e é vencida com um golpe brutal que a lança pela Sala dos Troféus e faz com que ela atravesse a parede da Sala de Armas, onde as armas alienígenas se revelam inúteis contra Mongul. Enquanto isso, Batman tenta friamente reanimar o Super-Homem, vendo nisso a única saída para a situação. Mais como resultado do desencanto crescente do Super-Homem com o mundo ilusório em que está que pelo esforços de Batman, a criatura se solta e aprisiona este último. É nesta altura que, livre da influencia da criatura, o Super-Homem desperta. A fantasia que ele vivera acaba e os dois extremos da narrativa se unem enquanto os eventos se dirigem para o clímax do episódio. Ok... uma vez com isto organizado, eu precisava desenvolver um esquema similar para os eventos na imaginação do Super-Homem: abrimos em Kryptonópolis, onde estabelecemos que ele vive como Kal-El, tem esposa e dois filhos e é um arqueólogo que trabalha por longas e cansativas horas. Ficamos sabendo que Krypton está numa fase de declínio social. O pai de Kal-El, Jor-El, foi expulso da comunidade científica, uma vez que suas previsões quanto ao destino de Krypton demonstraram ser infundadas e, com a morte de sua esposa, Lara, ele se tornou um homem frustado e amargurado, inclinado a grupos políticos extremistas na tentativa de interromper o declínio que vê nos padrões de vida kryptonianos. Isto o leva a entrar em conflito com seu filho, que é mais liberal, e os dois se desentendem. Vemos tais eventos culminarem quando sabemos que a prima de Kal-El, Kara, foi atacada e ferida por membros armados de um grupo de campanha pela abolição da Zona Fantasma e que alimentam um ressentimento intenso contra quem quer que seja ainda que remotamente ligado ao criador daquele projeto – Jor-El. Preocupado com estes acontecimentos, observamos Kal-El e sua família tentando abandonar Kryptonópolis tendo como pano de fundo um desfile de tochas, disparos e manifestações enquanto Krypton começa a se deslocar cada vez mais rapidamente em direção ao colapso. Finalmente, Kal-El não pode mais aceitar os termos da fantasia e não se sente mais preparado para pagar o preço miserável para sustentá-la. Ele rompe com a fantasia para encontrar Batman prisioneiro do parasita, quando os dois extremos da história se encontram. O próximo passo foi integrar estas seqüências num todo coerente, de forma que corressem paralelamente durante toda a primeira metade das quarenta páginas. Isto quer dizer, eu tive que dispor tanto as cenas da fantasia do Super-Homem quanto as cenas dentro da Fortaleza com Batman e Cia., decidindo por alto o que devia ir em cada pagina com um olho no resultado final dela, que deve conter uma cena completa. Eu sabia que toda esta parafernália precisava ir no começo do álbum, cobrindo as 25 primeiras paginas. Isto queria dizer que eu devia entrelaçar as duas linhas da narrativa em articulações bem sincronizadas e tentar trazer os dois extremos em direção ao auge aproximadamente ao mesmo tempo. Ao estabelecer um bom começo para a historia eu tive uma posição imediata: ou eu começava com a chegada dos super-heróis visitantes ou podia atirar o leitor direto na fantasia do Super-Homem sem qualquer explicação. Como parecia mais lógico que esta última alternativa tenderia mais a surpreender e instigar o leitor, decidi abrir com uma cena que se dá na Krypton ilusória do sonho do Super-Homem produzido pelo parasita. O efeito esperado sobre o leitor era algo como "O quê? Onde estamos? Em Krypton? Mas Krypton não explodiu? Ué... lá está Kal-El, com a mesma idade que tem hoje na Terra, mas parece meio diferente. Parece... comum, está usando óculos, tem um emprego regular, esposa e dois filhos. O que está acontecendo?" Se esta primeira página for intrigante o suficiente, então você já conseguiu evoluir bastante no processo de "fisgamento" do leitor. Ao estabelecermos esta situação básica nesta Krypton imaginária, viramos a página e passamos direto para o Círculo Ártico, para a chegada dos três visitantes para o aniversário do Super-Homem. Enquanto mantém um dialogo casual porém revelador, eles entram na fortaleza. Sabendo que as páginas 2 e 3 estão respectivamente na mão esquerda e direita, pareceu vantajoso aguardar qualquer grande cena de impacto visual até a pagina 4. Uma vez que há uma quebra de seqüência depois da página 4, e, como gosto muito de quadros que tomam toda a página, tanto para chamar o título da história como para dar à premissa sugerida o seu devido peso e ocasião, enfatizando o começo propriamente dito da historia, a pagina 4 é o auge da introdução: o Super-Homem paralisado com um sinistro tumor negro e vermelho brotando de seu peito. Com sorte, o leitor está curioso com este estado de coisas insólito o suficiente para pular os anúncios de Figos e Maçãs Newton até a página 5, no verso da folha, onde mostramos as reações dos companheiros do Super-Homem, tentando adivinhar o que acontecera ao seu colega. A pagina se encerra com um close do rosto do Super-Homem olhando para o nada enquanto Batman, atrás dele, comenta que o amigo se acha num mundo particular. Levamos o olhar para o topo da página 6. Aqui, temos uma imagem que evoca o quadrinho anterior. Mais uma vez, Kal-El olha para o nada, mas estamos de volta a Krypton, no sonho do Super-Homem, quase literalmente num "mundo particular". Assim, a coincidência de imagens e a ironia do comentário de Batman fornecem uma transição suave e semi-significativa entre as duas cenas sem perder a atenção do leitor. Na página 6, mostramos a relação entre Kal-El e a sua mulher, com um certo teor de detalhes emocionais, usando seu diálogo para dar ao leitor informações sobre como está a situação deles. A pagina termina com uma tomada noturna do edifício onde eles vivem contra um céu azul e rosa, imediatamente após Kal mencionar que vai visitar seu pai no dia seguinte. Viramos a folha e temos uma tomada mostrando um outro edifício kryptoniano, desta vez com um céu matutino, amarelo, laranja e vermelho ao fundo. Ainda estamos em Krypton, obviamente, e é igualmente obvio que é manhã do dia seguinte. Passamos ao encontro de três páginas de Kal-El e seu amargurado pai, que se encerra na página 9, com Jor-El esmigalhando raivosamente uma árvore ornamental de vidro no terraço e esmagando um pássaro de vidro, retratado no momento em que alimentava um filhote. A última tomada é da cabeça decepada do pássaro, com um verme de vidro ainda no bico. Ao mesmo tempo em que isto nos sugere uma imagem simbólica do rompimento da relação pai-filho entre Kal-El e seu velho, há uma ligação oblíqua com a legenda do próximo quadro, que diz: "na verdade, é só uma questao de juntar as peças". Esta frase, na realidade ligada à observação de Batman em seu processo dedutivo aplicado na investigação do que se dera com o Super-Homem, tem também aparente importância em relação a imagem do pássaro despedaçado, deixado no chão em fragmentos impossíveis de serem reconstituídos. Isto nos leva à página 10, onde principia uma cena de quarto de página em que Mongul chega e luta com a Mulher-Maravilha. Termina com o vilão dizendo "Obrigado. Acho que isto responde à minha pergunta", enquanto atinge a heroína, com o Super-Homem ao fundo, inerte, olhando para o vazio. Na próxima página, temos novamente uma cena em Krypton, no hospital. Em primeiro plano, temos a mãe da Super-Moça, Allura. Ao fundo, aproximadamente na mesma posição relativa em que se encontrava no último quadrinho, Kal-El entra no hospital. Allura interroga desesperadamente uma enfermeira sobre as condições de sua filha e diz: "Eu fiz uma pergunta!". Isto prossegue de modo similar, indo para frente e pra trás, até chegarmos à página 25 e alcançarmos o despertar do Super-Homem. Uma vez mapeada a primeira parte do álbum, fui capaz de enxergar quanto espaço disponível eu tinha para coordenar os eventos até o final. Eu sabia, por exemplo, que precisava de uma página final forte, precedida de uma ou duas páginas gastas apenas com as conclusões de ação e o estabelecimento de um estado de espírito de retorno à normalidade e reflexão sobre as lições que aprendemos. Isso consumiu mais ou menos umas quatro paginas. Quero dizer, restavam as páginas 26 a 36 para a ardente batalha final entre o Super-Homem e Mongul, o que parecia ser a duração correta. Usando o mesmo procedimento aproximado como antes, eu então procurei interromper esta seqüência de ação de dez páginas com um jorro interessante de eventos menores enquanto o Super-Homem e Mongul se espancam pela fortaleza. Para fazer isto funcionar, consultei exaustivamente o esquema da Fortaleza da Solidão, emprestado pelo meu desenhista, Dave "Fanboy" Gibbons. Eu sabia que o Super-Homem primeiro cairia sobre Mongul na Sala de Armas, onde o gigante alienígena espancava a Mulher-Maravilha. Se Mongul acertasse o Super-Homem com força o bastante para arremessá-lo através do teto, ele pararia no Zoológico Alienígena, imediatamente acima. Eles, então, se batendo pelo Zoológico, chegariam à Sala de Comunicações com seus arquivos de computador. Se, a esta altura, se jogassem no chão, se estatelariam diante da estátua gigante de Jor-El e Lara sustentando o globo de Krypton no meio deles. Este parecia um ótimo local para encerrar a batalha, com seu eco inerente do mundo onde o Super-Homem passou metade da historia em sonho. Enquanto isso acontecia, acompanhamos os progressos de Robin em lidar com o organismo alienígena que ele retirara de Batman. Ele segue o rastro de destruição deixado por Mongul e Super-Homem, chegando finalmente até os dois, a tempo de trazer o elemento vital para a derrota do vilão. De novo, isto tinha que ser feito de modo natural, trazendo os dois extremos da narrativa (Robin/parasita e Super-Homem/Mongul) ao auge simultaneamente. Mongul finalmente é derrotado por aquele organismo que pretendera usar para aprisionar o Super-Homem. Depois de uma conclusão de três páginas, na qual os heróis se descontraem e conversam depois da luta, temos Batman entregando sua rosa "Krypton", especialmente cultivada, que fora esmagada durante a luta. O super-Homem aceita com calma a morte da rosa, e, por extensão, a morte de Krypton, dando um ponto emocional contido para o encerramento da história, com a idéia central razoavelmente explorada e ao menos parcialmente resolvida. A página final, evocando a primeira página, nos dá uma tomada da terrível e sangrenta realidade vivida por Mongul sob a influência do parasita, mostrando que ele está mais desesperadamente proso dentro de seu sonho do que jamais estaria o Super-Homem, nos dando um contraponto ao eventual sucesso deste último com sua eventual derrota. Bom, temos a história completamente dissecada com uma compreensão aproximada do que vai em cada página, bem como com a compreensão de como os elementos dispersos que analisamos estão trabalhando conjuntamente para formar um todo. As únicas etapas restantes são meramente processos criativos finais no alcance da trilha correta, tanto na narrativa verbal quanto da visual. A lapidação da linguagem é importante, pois naquele linguajar canhestro, chato, ou sem vida residem chances muito altas de desinteressar o leitor em relação ao enredo que você deseja narrar. Você deve aprender como usar as palavras com o máximo de sua habilidade, mais uma vez aplicando o raciocínio realista aos procedimentos envolvidos. É fácil desenvolver uma sensibilidade visual, por exemplo, ainda que seja mínima, como a minha, adotando o hábito de fazer rabiscos esquemáticos de cada página antes de escrevê-la, mostrando os elementos visuais que vão em cada quadrinho. Você recolherá uma idéia do que é possível mostrar em cada quadrinho, e você terá uma noção de como se constituirá uma frase completa; há muitos closes de rostos ou tomadas de vultos? São todos vistos do mesmo angulo sem-graça? Este quadro onde você quer estabelecer um sentido de ameaça não teria mais efeito se fosse visto de cima, de modo que sentíssemos quase que subliminarmente alguém observando os personagens de cima, desprevenidos lá embaixo, pronto para atacá-los? Isto seria melhor se fosse uma seqüência de três quadrinhos ao invés de um só, usando o quadrinho restante para alguma outra coisa? Há muitas informações espremidas neste quadrinho e, neste caso, há espaço na página para distribuí-los em dois quadrinhos, de modo que seja lida mais suavemente? Dicas deste tipo permitirão ao desenhista compreender o efeito que você busca e o propósito por trás dele, o que ele poderá usar como ponto de partida para quaisquer informações visuais que ele deseje acrescentar à sua história, tendo em mente que ele, com quase toda certeza do mundo, terá uma sensibilidade (ou intuição) visual 50 vezes mais sólida e confiável que a sua (nota do tradutor: desde que você não esteja trabalhando com um tapado ou um incompetente, é claro!) (Tradução de Fernando Aoki, segundo J. M. Trevisan)parte 1 • parte 2 • parte 3