Lars evitava cozinhar, ele até que sabia preparar refeições, mas evitava. E não era por frescura ou preguiça, mas por receber e manusear diretamente itens delicados, ter gordura ou algum condimento nas mãos seria....
- Essa desculpa nunca convenceu, Doção :Þ
- Mas ao menos eu ponho tudo para lavar e guardo depois, Docinho :]
Louças, roupas, biblioteca e itens perdidos pelos corredores. As mulheres da casa eram o caos, ele que era o certinho organizado.
- Exceto quando tu esquece algo no caminho.
- Hoje é dia de me depredar, é?
- Tenho culpa se tu se vangloria falando sozinho enquanto guarda a louça?
DingDong!
- Quem...?
- Vou ver.
Lia deixa a cara metade sozinha cuidando da cozinha e volta esbaforida:
- É Mateo!, se arruma!
Logo o casal estava mais vestido e mais formal, com o ilustre visitante na sala menor, com sofás quase tão acolhedores quanto um abraço e uma mesa de centro que gostava de receber tanto documentos quanto ser apoio de pés descalços.
- E a adorável filhinha de voi?
- Klara está na casa de uma amiga, senhor Agostini.
- Ah, que bom. - o homem magro e de cabelos encaracolados dá um sorriso desinteressado. Era responsável por quatro crianças, elogiar as alheias era mera formalidade.
= E, então.... - o casal tenta catalizar a conversa até o ponto em que interessa a todos.
- E, então, senhor e senhora Sigl: mês que vem é aniversário de papae, setenta anos, (voi serão convidados, claro) e voi já conhecem o homem: todo ano, nessa época, ele começa a azedar mais, remoer o passado.
- É por causa de teu avô, sé?
- Sim, senhor Sigl. Ele desapareceu um dia depois que meu pae fez vinte e um ani.
- Que trágico - Lia completa.
- Demais. Especialmente para nós lá em casa, porque ele se lembra de cada erro que fizemos desde que éramos criance, e joga em nossa cara, cobra dívide e promesse, dentro e... fora da família....
Lars e Lia sentem a alma gelar quando Mateo dá uma pausa e olha profundamente para eles.
- Sim, ele falou de voi e lembrou que estão com algume anuidadi da casa atrasade, mesmo tendo um pégaso em cima do galpão. E que, com tanto trânsito de clienti e antiguidadi aqui, voi nunca conseguiram uma pista do paradeiro de meu avô.
= Oh-oh.
- Voi sabem: papae, e até onde sei, meus tii também, acreditam que ele está vivo ainda... bom, voi conhecem a história.
- Sim, tu nos contou. Ele desapareceu, deixou o bairro para os filhi e... deve ter mais de cem ani agora.
Mateo move a cabeça, "sim". O ceticismo quanto àquele homem ainda estar andando e fora de um caixão é unânime naquela sala.
- É - continua - e, vivo ou morto, ele foi um homem mui misterioso, tanto antes de se casar com minha vó e comprar o bairro, quanto depois de desaparecer. Paguei para dúzias procurarem e pesquisarem sobre a vida dele todi esti ani e quase nada me apareceu.
- E também prometemos te informar de qualquer pista que encontrarmos sobre ele, mas também nada apareceu para nós.... - Lars completa.
- Sim, e por causa disso o contrato da tua casa está na mira do azedume dele agora.
Os Sigl olham preocupados para tudo em torno deles. A sensação é de que tudo o que eles construíram sumiria à qualquer momento num sopro.
- Por isso, decidi caminhar até aqui - lá fora fazia um gostoso barulho de chuva engrossando, as gotas tamborilavam nos telhados e algumas cascatas começavam a surgir nas calhas - já que...
O semblante de Mateo muda do fúnebre para "perguntem 'o quê?'".
- O quê?
- Recebi notície...
Oh!
- ...parece que há uma carta dele, remetida um ano depois do desaparecimento.
= E onde ela está?? - entrega-la ao mais velho dos Agostini o deixaria feliz e mataria de vez o mais novo maior problema da vida dos Sigl.
- Aqui que está o problema - respira fundo - ela está com o Governador.
- Ai, bosta.
Os homens olham para Lia concordando em silêncio. Apesar da formalidade aparente, Mateo tinha intimidade o suficiente para ouvir e soltar palavrões. De qualquer forma, não havia palavra melhor para definir a situação.
Longos momentos em que cada pessoa na sala ficou a sós com seus pensamentos.
- Conseguiremos o documento em troca de algo que ele queira - Lars.
- E que não seja tua cabeça numa bandeia, não é, Doção?
- Prefiro os dois com a cabeça no lugar, e nesta casa.... Será que ele se interessa por moedas? Estou querendo me desfazer daquela minha coleção...
- Ah! - Subitamente Lia se lembra de algo e cutuca o marido, que entende quase como transmissão de pensamento:
- Senhor Agostini... mudando de assunto e aproveitando que tu está aqui, tenho algo que talvez te interesse. Conseguimos anteontem...
//////////////////25 de janeiro
Quase o dobro da idade da filha de Lia e Lars e numa altura maior que sessenta andares acima do solo, a maior cidade e capital do estado possui um punhado de bairros sustentados por engenhos antigravitacionais, orbitando placidamente o marco zero em frente à Catedral.
Sobre um destes bairros, o do Pica-Pau Amarelo, um casal admira criticamente as mansões, veículos e outros caprichos da casta mais abastada da sua sociedade. Os Sigl se esforçam em ignorar as nababescas aberrações arquitetônicas, construções exaustas e praticamente roucas de tanto berrar ostentação, e se apressam em chegar à imensa porta, esculpida em um tronco único de legítima madeira negra da Espinha Dorsal canteniana, de uma das mansões da alameda Pedro Encerrabodes de Oliveira, uma exagerada entrada quase que tão alta quanto a casa de três andares deles.
- Para que tanta porta? Eli querem que um asteroide entre e saia junto com as visite, é?
Lars dá de ombros à pergunta de Lia e, seja qual a intenção dos donos daquele lugar, logo estavam lá dentro, sem asteroides como companhia, mas guiados por um mordomo de sotaque estrangeiro (sotaque falso, não enganaria nem um canteniano). Depois de alguns corredores e um elevador, estavam sozinhos em um quarto vazio, sem janela, com um papel de parede ainda novo, todo em um simpático padrão vertical branco e rosa.
- Estão de mudança, só não sei se estão chegando ou saindo daqui - Lia analisa.
- Na verdade... fiz saírem - surge por uma das portas que chegam ao cômodo uma mulher corpulenta, toda em vermelho e branco - nem tode as pessoe que que moram na vizinhança pagam por onde vivem, sabe? E lamento que não são pouqui...
- Ah, senhora Souza, prazer em conhecê-la.
- Lars e Lia Sigl, não? O prazer é meu... e me chamem de Anastácia, por favor, gosto do meu primeiro nome, todi me conhecem assim e o herdei de minha tia, que era uma amor de pessoa e uma excelente cozinheira, tão boa com comida que fez sucesso e... me ajudou a ser dona de um terço das mansãos aqui. Já "Souza", tem mui por aí, nem todi bons, e ele sequer é o sobrenome verdadeiro dos meus antepassadi, que um dia descobrirei... =/
= Ah....
- Desculpem-me, nunca paro de falar - a mulher se interrompe com um enorme sorriso.
- Não, não - Lia sorri em resposta - mas... por que nos chamou?
- Ah, eis a pergunta de ouro!! Simples: os antigui inquilini deixaram um dos quarti um tanto... tóxico, e tode pessoas que consultei recomendaram voi como os melhores para solucionar esse problema.
- Sim, sim, quem nos contatou nos informou, mas o que acontece exatamente neste quarto? - Lars.
- Melhor mostrar, está atrás deste porte - as empurra com as mãos, dando um pulinho para trás, como que com medo do que tinha lá dentro.
O quarto tinha uma janela, daquelas de abrir as duas metades com venezianas para fora, permitindo a entrada da luz do sol... mas ela parecia estar próxima quanto à anos-luz de distância, colocada de qualquer jeito no ar, suspensa em ângulos estranhos, distorcida. Mesmo com o vidro fechado, uma cortina tênue se agitava e, entre a janela e a porta, havia um universo, onde o mais profundo negro era tomado de súbito por supernovas, num ciclo sem lógica de luz e trevas absolutas. Haviam paredes, gigantescas, ciclópicas, às vezes brilhavam em doentios tons de cores secundárias, que a mente dos Sigl não conseguia as conectar entre si e com o restante do que viam: figuras que remetiam à objetos domésticos normais, mas irriquietamente distorcendo-se entre duas, três dimensões e sensações olfativas, nuvens de pó suspensas no ar que se revelavam a cada mínimo pulso de luz, sons que eram formas, o referencial de cima e de baixo oscilava, a forte sensação de alongados seres sombrios que eram formados pela ausência de elementos flutuando. Aquele ambiente ria escandalosamente em quem confiava na lógica da geometria euclidiana.
- Ah, isso - Lia mal levanta uma sobrancelha e de imediato mexe em sua bolsa, procurando por algo.
- J-já viram algo assim?
- Algume vezes - Lars diz enquanto ajeita os protetores que pôs nos ouvidos - senho... Anastácia, não conseguiremos mais te ouvir, mas julgo que resolveremos isso asinha - coloca óculos protetores nos olhos, de lentes redondas e verdes, e em seguida faz um sinal para a esposa: eles entrariam lá.
O mordomo chega no momento em que o casal passa, a porta e assiste, junto da poderosa senhora ao seu lado, os dois se a l o n g a r e m e se ditsocrerem, mudarem aleatoriamente de tons e cores, em moViMeNtOs que às vezes pare ciamque esta vamden tro da água, em invertida ordem e fr gm nt d .
Para os obsrvadores, a cabela deles deles
a
t
i
n
g
i
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o céu, ee às zeves
u
ltr
apass
avam o firmamento.
Às vezes eram um,
às vezes eram três pessoas ali,
às vezes eram até duas pessoas mesmo.... de fora, era quase impossível entender o que acontecia no quarto, os Sigl pareciam andar a esmo, como se procurando algo, ou estavam sendo jogados de um lado para o outro? A janela continuava lá longe, às vezes parecia passa-los, suas cortinas balançantes viravam mãos que inutilmente tentavam agarrar os estranhos que perturbavam aquele lugar, e ela se cansava e se reduzia para longe, a ponto de ser oculta por nosso polegar no fim do braço esticado.
E então, um grito de desesperada dor, daqueles de arrepiar cada pelo, de gelar a alma e fazer pessoas caírem sentadas no chão junto com a vontade de viver.
Uma respirada profunda depois, daquelas para recuperar o ar perdido no grito coletivo, e estavam de volta Lars e Lia. Exaustos, mas bem e fora do quarto, retirando os incômodos óculos do rosto suado, os protetores de ouvido, também exaustos, como se tivessem corrido uma ladeira de quilômetros desde o quarto em que estavam até os dois outros humanos da casa, que ainda não tinham resgatado as forças para saírem do chão e se levantarem....
- O que aconteceu, afinal? Que objeto é esse? - Anastácia gira com o dedo a esfera pouco menor que um limão, fofa e vítrea, com um mapa múndi estilizado e translúcido (e meio errado, também) estampado na superfície - Tem certeza que está destruído? - Ela olha atentamente lá dentro, seus mecanismos internos se assemelham à uma cidade em miniatura.
- Está desligado - diz Lia, que recebe de volta o aparelho.
Eles estão dentro do quarto que acabaram de "limpar", em gostosas cadeiras de madeira e almofadadas em veludo vermelho que trouxeram do cômodo onde estavam antes. A janela, agora aberta, não ameaçada ninguém e através dela entrava uma brisa gostosa, balançando as leves cortinas de pano branco, emoldurando a paisagem que revelava a enorme torre central do bairro, onde se viam pessoas andando, correndo, nadando, além de casas, todos suspensos num ângulo perpendicular ao chão lá embaixo. Ostentação até de gravidade artificial, ela pensa, enquanto ouve o marido explicar para a cliente:
- Não sei o nome exato desse tipo de mecanismo, senhora... digo, Anastácia. As pessoas chamam eli de "ovo, "sítio" e, óbvio, não são feiti na Terra e que a Constelação não permite que esse tipo de mecanismo seja vendido por aqui...
- Mas todo mundo sabe que as proibiçãos da Constelação funcionam de acordo com os... interessi dos fiscais - Anastácia completa o pensamento de Lars.
- Isso. E como são contrabando, nem sempre a qualidade é garantida. Lembro que apreenderam um lote enorme desses aqui ano retrasado, dizem que feiti em Dbad. Aposto que este aqui - Lia põe a bolinha pro alto, entre os dedos, para todos olharem mais uma vez - veio do mesmo lugar. Deve ter custado caro, entreteve quem comprou até o dia que deu problema...
- Os antigui doni me disseram que esse quarto ficou fechado por dois ani...
- Então estragou bem asinha :P
- ...É! Ano retrasado, é verdade, senhora Sigl... e eli preferiram fechar as porte do cômodo do que procurar ajuda e arriscar a fiscalização bater nas enormi porte deli. Mas o que isso faz mesmo?
- Existem vários modelos e o desse dispositivo aqui... - Lars faz uma cara esquisita - bem, ele faz as pessoe em torno de quem possui saberem qualquer cousa que o dono queira que as pessoas saibam, sem ter de perguntar. Tem quem queira que todi saibam dos feiti deli mesmi, tem quem deixa todi em torno atualizadi de qualquer novidade de seu artista preferido. Também dá para deixar toda uma equipe em um lugar sempre ciente do que o chefe quer que façam, ou da agenda dele.
- Curioso.
- Esquisito também - diz Lars. Pelo que entendi, ele usa onde sonore inaudíveis - julgo que para abrir breche na percepção das pessoe - e mais couse que nem tenho ideia como funcionam, para transmitir o que quer que o dono queira.
- Quando nós tapamos os ouvidi, aquele caos todo ficou quase que normal para nós, aí foi só questão de descobrir onde estava o emissor e como desligar.
- Tudo aquilo é culpa desse brinquedinho aí...
- Que deu defeito.
- E o que farão com ele? O levarão?
= Nãããão - os Sigl são enfáticos. Sem motivos nós já temos visite ocasionais da fiscalização, não queremos dar um motivo à eli.
- A não ser que tu queira de recordação, o destruiremos antes de chegar em casa - Lars completa a fala de Lia - e... o que acontecerá com os objeti que estão nesse quarto?
Apesar da bagunça ilusória que assombrava ali até poucos minutos atrás, o ambiente estava bastante organizado: a cama estava como se o dono tivesse acabado de se levantar, também havia um guarda-roupas, uma estante com livros e objetos diversos, além de outros numa caixa próxima e alguns jogados no chão.
- O acordo na Justiça me cedeu a posse de tudo no que ficasse na casa, o mordomo inclusive. A dívida deli é enorme, só é menor que a dor de cabeça que estão me dando.
- Hmmm, te interessa negociar... alguns destes objeti em troca do abatimento de parte de nossos honorárii?
//////////////////27 de janeiro
- Ah, voi conheceram a senhora Souza então? Ela anda irritando algumas pessoas... e eu gargalho quando certe pessoe estão irritade. Só não entendo porque ela demora tanto para desalojar na justiça estes caloteiri com péssimo gosto, conosco é sempre bem mais asinha....
- Bom, talvez por ela ser negra e mulher... - opina a senhora Sigl, que, por sinal, odeia ser chamada de "senhora Sigl".
- Não entendi - Mateo responde, sincero.
- Deixa para lá...
Cof-cof.
- Pegou a gripe norte-americana, Mateo?
- Haha, não. Esse tempo que muda demais... e decidi andar na chuva, foi isso. Mas... o que teu marido foi buscar no galpão? O que voi conseguiram que me interessaria?
- Isso:
Lars chega mostrando uma caixinha preta na palma na mão. Aveludada por fora, aberta, um tecido acetinado serve de berço para um anel dourado com glifos astronômicos.
- Oh - o visitante se emociona - papae dizia que vovô possuia um assim, que se desdobrava numa esfera armilar.
- Existem outros anéis assim, esse aqui parece ser uma réplica, feita no século passado. Veja, é uma peça bonita, é prata folheada à ouro...
- Pare de falar e pegue meu dinheiro! - Lars é interrompido por uma velha piada - Quanto tu quer por ele? Talvez agrade papae... se eu resolver mostra-lo.
- Queremos as moede de tua coleção.
- Queremos moede, Lia?
- Sim, queremos, Lars.