Era uma sonolenta manhã de quinta-feira e o Sol nascera animadíssimo: totalmente disposto a aquecer e iluminar a metrópole esparramada à sua frente, flexionava com vontade seus músculos estelares. Começava o dia com vermelho-querida-cheguei bem caprichado, gradativamente subindo a frequência da luz até torná-la amarela, ao mesmo tempo que ia ajustando o brilho para o nível máximo, enquanto galgava alguns graus para cima da linha do horizonte e ainda por cima colocava o calor para dentro dos padrões esperados para aquela época do ano. Sim, ele fazia tudo isso ao mesmo tempo agora: não se chega aos quase cinco bilhões de anos de idade sem aprender um malabarismo ou dois, não é?
Mas, enquanto o Grande Luzeiro do Dia se esforçava em tingir o firmamento em um tom raro e agradável, exatamente às nove e cinquenta e quatro toda a boa intenção foi jogada no lixo, destruída pela frente de uma massa de ar migrante da Antártida, insensível com o trabalho alheio e também empolgadíssima em se mostrar após dias caminhada, ensaios e preparativos: rapidinho ela deixou o céu no tradicional cinza-paulista e desempacotou uma tênue garoa, lentamente molhando a cidade e apagando os desenhos que uma menina insistia em fazer na calçada da rua Montes Cárpatos com um pedaço de tijolo vermelho.
Klara tinha oito-quase-nove anos e cabelos lisos, loiros, compridos e franjados, devidamente presos por um arco de cabelo. Também tinha uma mãe, que como o restante dos paulistanos, fora enganada pelo calor e vestira a filha com roupas leves - uma camiseta branca estampada com bichinhos e uma gasta bermudinha azul. A menina estava agachada na sua diversão, sujando seus joelhos de tijolo, rabiscando um enorme painel que apenas ela e sua própria imaginação entendiam, até que a garoa resolve engrossar e sua mãe percebe que passou da hora de chamar a filha para dentro:
- Klara...
- Sé, mã, sé. Estou indo... e-ei!!
Sem aviso, antes da menina desajoelhar-se e obedecer, miúdas luzes surgem por detrás dela e correm a rua quase que num piscar de olhos, o mundo escurece e a chuva para num repente, como se São Pedro não tivesse pago a conta da água dos últimos meses. Já sabendo o que acontecia, Klara vira a cabeça para cima para testemunhar o céu ser preenchido por milhares de toneladas de metal e cerâmica elegantemente sustentadas por motores antigravitacionais. Era uma enorme nave branca, planando sobre o bairro e seguindo lentamente para o norte, uma visão comum naqueles tempos, mas ainda assim...
- Uau!
Uau.
Ainda no chão, ela acompanha com a vista e de queixo caído o pacífico cetáceo de metal que sobrevoa a rua, imersa em um transe que é subitamente quebrado por um banho frio da água acumulada da chuva que escapava com força do teto da nave! Quando consegue abrir os olhos de novo, Klara era um misto de menina encharcada até a alma com uma metralhadora de espirros, e agora o veículo era só uma mancha enorme sob as nuvens lá adiante, escoltada por efêmeras e gigantescas sombras humanoides, se ocultando com as camadas de garoa, calmamente indo para o norte...
- KLARA!!
- A chuva parou, mã!!
- Mas olha como tu está toda molhada, menina!! Para dentro agora, se banhar e se secar!! Teu pae já-já chega e parece que vem com visite. Asinha, asinha!
E assim, a chuva foi deixada sozinha na rua, brincando de estragar os desenhos de uma menina feitos com um pedaço de tijolo e os planos mais aconchegantes do Sol lá em cima.
A velha mangueira, guardada atrás dos altos muros daquela casa, era a primeira coisa a ser vista no quintal, precedendo a residência dos Sigl, um sobrado de alvenaria que um dia foi colorido em um tom de salmão extravagante - que desbotou rapidamente - e encimado por uma cobertura inclinada, feita de telhas, daquelas vermelhas de barro cozido. Como o quarto de Klara era no sótão, havia alguns recortes na telhado para acomodar janelas e varanda que volta e meia era forradas por folhas velhas trazidas pelo vento.
À direita ficava o galpão, uma enorme caixa quadrada de dois andares, totalmente pintado do mesmo tom de rosa a-casa-precisa-de-uma-cor-nova-não-é-bem, exceto a parte baixa da parede voltada para o sobrado, que era verde lousa, especialmente feita para a mais nova da família brincar com giz (atividade preferida da menina, exceto quando ela queria variar de materiais para se expressar, como o já citado "tijolo velho sobre asfalto", "carvão em parede salmão papae-um-dia-pintará-de-novo" ou o desastroso porém revolucionário "canetinha em lençol branco previamente texturizado com tesoura escolar de ponta redonda"). A porta frontal do galpão era larga, mas raramente aberta - para acessar o seu interior, os Sigl e clientes usavam mais as passagens laterais que ligavam as duas construções: em baixo havia uma passarela que saia da casa a partir do corredor que separava a cozinha da sala de jantar, e sobre esta mesma passarela a construção outro vínculo, dessa vez com o quarto dos pais da menina. Acima de tudo isso, sobre o teto, os Sigl tem uma área coberta para o carro.
Era ali no galpão que os pais de Klara - importadores e exportadores de antiguidades, artesanato e produtos tradicionais de várias regiões da Terra para qualquer um capaz de pagar dentro e fora do Sistema Solar - mantinham algumas das mercadorias mais valiosas. O escritório oficial ficava em um prédio maior entre o Centro Velho da cidade e a avenida Paulista, mas pouco do mostruário ficava fisicamente lá: o grosso do estoque ficava em um espaço enorme alugado junto do porto e o que era reservado para um público mais seleto guardava ali, na rua dos Montes Cárpatos.
Os dois senhores de terno e chapéu pretos que o pai de Klara trouxe certamente vinham de algum mundo habitado por terrestres e sem dúvida eram clientes dos mais seletos, apesar da menina não lembrar de visitas anteriores da dupla. Não falavam português, mas Klara reconheceu a língua, a mesma que vovó usava para praguejar e resmungar sozinha, e que nunca ensinaram a ela, exceto... bom, seu pai ou os clientes falassem um palavrão, a menina traduziria de imediato. Sua falecida avó xingava tanto a vida, para quem quisesse ouvir ou não, que praticamente imprimira nos genes da neta um extenso vocabulário de ofensas em alemão.
- Klara, largue de ser intrometida, vai para o teu quarto e finite de enxugar teus cabeli já!! Asinha!! Sua mãe aparece de surpresa, pegando a filha xereta no flagra - E não sobe esta escada correndo, cousa!!
- Escuso, mã - diz já no alto da escadaria, logo se enxugando andando pelo corredor do andar de cima, criando uma trilha de gotas de água no assoalho até que decide dar uma paradinha e fazer um turbante rosa com a toalha para subir a escada que vai até o seu quarto no sótão.
- Bah, que tédio! E mergulha na cama com turbante e tudo, se integrando à uma multidão de bichos de pelúcia. De queixo no colchão, silenciosa como a fauna estufada em torno de si, assiste a chegada de uma das baratinhas robóticas da casa fazer seu serviço de limpeza, comendo pó do chão e das frestas, restos de alimentos e até algumas formigas e outros artrópodes azarados em seu caminho. Por algum tempo, a aparição da máquina chega a entreter, mas o equipamento é sem pressa e vai de cá para lá, de cá para cá, repetitivo e metódico...
Seus olhos pesam...
Logo ela dorme.
(Lá fora, a semi-garoa decidiu sair do armário e finalmente se assumiu plenamente como chuva. E acima das nuvens, o Sol esperava pacientemente a próxima oportunidade de aquecer a cidade.)
Está descalça.
Sozinha em uma floresta de gigantescas árvores, verdadeiras torres vegetais com troncos muitas dez vezes mais largos que ela própria, reinando solenemente sobre arbustos esparsos e um gramado ralo. Sem questionar, segue uma trilha de pedras, sempre em frente, admirando as copas cheias de ramos lá no alto - uma repetição quase hipnótica de colossais topos abundantes galhos exagerados, fartos de folhas e flores.
Mas, não havia barulho, nem de pássaros ou de qualquer animal.
Imensas, as árvores não se tocavam.
E na base de todos os troncos, do chão até a altura de dois palmos acima da cabeça, haviam sinais de incêndio antigo, evidentes traços de queimado, todos os galhos mais baixos haviam virado carvão, deixando apenas tocos estéreis nas árvores como prova de sua existência. Até algumas das pedras achatadas da trilha tinham sido fundidas umas às outras por algum ancestral calor de fornalha.
.....
Muito, mas muito tempo de estrada depois, finalmente chega ao fim do caminho de pedras e agora tinha à sua frente uma clareira com oito árvores dispostas em torno de um centro comum, todas imensas, maiores que as outras da floresta, nunca tocadas pelo fogo. Não havia sinais de carvão em nenhuma delas, grossos galhos saíam de uma altura que até ela poderia alcançar e escalar.
Avistando-as de longe, ela mesma imaginara que o conjunto era uma gigantesca árvore.
Sabia que via algo importante, mas não conseguia decifrar o quê. Quem sabe escalando as árvores não resolveria o mistério, ou ao menos encontraria algo para comer lá em cima, estava faminta e... parece que o tempo esquentou, não? Uma inesperada gota de suor cai da própria testa a faz olhar para o céu de novo... haviam CHAMAS entre as ÁRVORES!
E estas se alastram, convertendo rapidamente tudo em uma horrível bola de fogo que não para de crescer e fazem Klara
correr
desesperada,
chorando, chamando pela mãe, gritando pelo pai, fugindo daquele inferno em expansão que consumia as outras árvores e começava a deglutir as outras uma a uma em uma escala acelerada atrás da menina, até que sem aviso ela tromba com um homem de terno, que aponta um revólver
Atira!
E então
Klara
morre
baleada...
A última visão que a menina sonha é a de uma mão indicando o número "três" com os dedos indicador, médio e anelar, e...
...!!!
Num repente, Klara desperta! Ofegante.
Com seus olhos negros arregalados.
Lá fora, chovia sem economia, com gastos extras com relâmpagos aqui e ali, acompanhados de competentíssimos trovões que devem ter estourado o orçamento.
- Filha, já se trocou? - sua mãe aparece na escada, acrescentando mais susto à uma menina que encontrou o Senhor dos Sonhos de mau-humor.
- AAAAI!! ...atchim! N-não, mã.
Em dois tempos, Klara-mãe estava do lado da cama, separando a filha do amontoado de bichos felpudos.
- Eu duvidava que sim... e continua com os cabeli molhadi... e febril! Teimosa! Tu nunca me obedece!!
- Atchim! Atchim! Escuso, mã.
- Fica quieta e não me deixa o termômetro cair. A mãe de Klara tinha o dom de ignorar os princípios básicos da física quando o assunto era a saúde da família. Moveu-se mais rápido que a luz até a cama da filha, fez brotar do éter termômetro, xaropes, comprimidos e uma toalha seca para concluir o serviço inacabado de retirar a água dos cabelos da criança, que aquietou-se - meio por estar encabulada com a bronca materna, meio por ainda por sua alma vibrar na frequência dos ecos do seu sonho ruim - e deixou a mãe terminar de enxugar seus cabelos e troca-la com roupas mais secas, passiva como se fosse uma boneca de pano.
- Tu está um dedinho de quente, mas não é febre. Abra a boca.
- Ah, o de pinguinho não, mã, é mui ruim!
- Só pus vinte pingui na água, Klara! Bebe asinha e não faz careta!
- (Glub, glub) - ela bebe como se a água dissolvesse seus dentes - Blergh!!
- Tu é mui exagerada, filha!
- Então bebe tu os pingui, mã!
- Não sou quem está ficando febril, e não quero ter gosto ruim na boca pelo resto do dia.
- (Eca, eca!) Não vale! Tu sabia que não estava exagerando!! Klara diz fazendo cara de azedo enquanto a mãe sorri achando graça da sua criança, penteando os cabelos dela ritmadamente, fazendo a menina se distrair da realidade. Fechando os olhos aparecia bem vívida na nuca de Klara a impressão da onda de chamas se aproximando, e tinha a nítida certeza de que, se respirasse fundo, sentiria no seu tórax onde a bala a perfurou...
- E papae?
- No galpão. Acredita que fará bom negócio com aqueli estrangeiri, mas faz para mim que eli não comprarão nada não, se mui umas moedinhe velhe. Agora finite de se trocar para jantarmos, temos macarronada hoje.
- Nham!! E de swobremesa?
- Pudim de leite. Do jeito que tu gosta.
- Nham! Nham!
Uma overdose de carboidratos depois...
Macarrão.
Muito macarrão, com molho de especiarias tymyze, farto à ponto de Klara manchar a roupa =9
Pudim.
Conforme o prometido, pudim de leite, com calda de açúcar derretido. Uma mágica culinária capaz de matar qualquer sonho ruim.
- Os clienti demoraram hoje, hein, pae?
Lars Sigl (ops, me esqueci de apresentar a vocês, é o nome do pai de Klara - leitor, Lars; Lars, leitor. E essa adorável senhora, "obrigada", é sua esposa, Lia Sigl. Cumprimentaram-se? Bom! Apresentações feitas, voltemos: "Lars Sigl...") é pego pela pergunta no meio do trajeto de seu garfo até a boca.
- São um par de avarenti, com um escorpião no bolso, mas representanti de um colecionador de Alemanha antiga.
- Tanto tempo e estes representanti compraram nada, Lars?
É a na hora da janta - arroz, feijão, bife à moda Ishtar e cubinhos de tomates azuis.
- Se interessaram apenas em coise triviais do século passado. Tanto que nem cogitei levá-los às sale principais do galpão...
Klara desinteressa, a conversa não ia para a direção que queria. Dá as garfadas que faltam para terminar de comer e afasta o prato, hora de fazer o ataque direito ao seu maior problema: fazer o dia de amanhã ser mais interessante que hoje.
- Mã, posso ir à casa de Maria amanhã?
- Claro.
- Só tua mã manda em casa? Não pede permissão para teu pae também não?
"Lá vem..."
- Filha, tem um livro azul grande sobre a mesinha da biblioteca. Trás cá para mim agora que te permito ir...
- Comi demais - pensou em voz, no antepenúltimo degrau para o pavimento superior. Imaginava-se um dinossauro subindo a escada, os pobres degraus gemendo à cada passo. Comera demais.
Desajeitada, abre as portas da biblioteca com rispidez, fechando em seguida com toda a sua força, fazendo três "Ai!" livrinhos "Ai!" caírem em "Ai!" sua cabeça - um atrás do outro e arrebentando um pouco as encadernações no choque com a dureza do chão e a da cabeça da menina. =P
Imagine...
...que você tenha quase nove anos com pais que gostem e (literalmente) vivam de antiguidades. Sermões sobre tomar cuidado com os objetos da casa são uma constante desagradável e só agora depois de anos de prática está tomando jeito...
Imaginou?
Então...
- Filha!! - a menina morre e ressuscita com o susto - Tu está bagunçando a biblioteca?
- N-não, pae, estou pegando o livro!!
E agora?
Não está a fim de colocar mais uma bronca no currículo. O lugar dos livrinhos deve ser lá no alto, empilhados horizontalmente sobre outros volumes, longe do alcance de mãozinhas curiosas. Escalar vai dar um trabalhão, sé?... E concluiu que não seria inteligente fazer isso, não agora.
Deu uma mordidinha na ponta da língua para acordar das divagações e tirou os olhos do alto para se preocupar com o mais urgente na terra: pegou o treco azul em cima da mesinha e os três-pequenos-futuro-motivos-de-bronca estatelados no chão, escondeu provisoriamente atrás da porta do banheiro, desceu à sala, entregou a encomenda azul para seu pai, distraído demais com o noticiário no correo para a ver sombras de culpa nos olhinhos negros da cria, subiu de volta quase tropeçando nas sandálias ("Klara, não corre nessa escada, cousa!" "sé, mã, sé!") e não se esqueceu das três encrencas estateladas, subindo-as consigo pela escada que dá em seu quarto. Mal chegou lá, ocultou-os em sua legião de bichos de pelúcia e deixou os problemas de hoje para o dia seguinte. Ou quiçá depois.