(com essa imagem acabo puxando briga com três dos gêneros: gays, evangélicos e designers)
Enfim, ignorem a figura acima, explico ela láááá em baixo.
Em meados do ano passado, vi a seguinte imagem num chat:
Tradução, para o texto de cima: “uma pequena pista sobre o que mora no coração do 'mês do orgulho'...”
Em seguida, “Pride Month” (mês do orgulho) é alterado para enfatizar o encontro de consoantes que resulta em “demon” (demônio).
E, abaixo de tudo: “A Bíblia diz do príncipe dos demônios que '... ele é um rei sobre todos os filhos do orgulho'” (Jó 41:34)“
No cantinho, aparece o logo é de uma editora gringa (não vou por links, para não fazer mais propaganda grátis. Essa bosta ter viralizado já é mais do que merecem) e, pelo que consegui caçar, segue a linha que a tradução do Rei Tiago (King James Version) é superior a todas as outras em inglês. Já vi a venda Bíblias em português traduzidas da KJV e fico me perguntando porque caralhos alguém quer ler a tradução da tradução do texto original (que provavelmente já é uma tradução)?
(na verdade, existe toda uma discussão sobre a KJV, que conheço por alto, e nem vai ser o tema desse texto. Tem um vídeo legal sobre isso, que está em inglês, mas tem legendas e o YouTube traduz elas pro português: )
Picuinhas sobre o sabor favorito das Escrituras à parte, vamos ao texto citado pela imagem: par quem não conhece, o livro de Jó narra a história de um homem que vivia bem e era muito fiel a Deus etc. Aí o diabo chega até Deus e fala algo tipo ”esse carinha só é fiel à Você porque é tratado a pão de ló, se tirar tudo dele, vai Te renegar“. Aí acontece uma série de desgraças pro coitado que estava de boinha na terra dele, vem um punhado de amigo pronto a apontar o dedo na cara de quem se ferra na vida encher o saco - o que é o grosso do corpo do texto, com longos monólogos - , Jó se defende, Deus aparece pra dizer que Ele quem manda e faz o que quer e no fim Jó concorda e recupera tudo o que tinha em dobro.
Esse é meu resumo de memória e, apesar de Jó ser bastante elogiado como literatura, ainda não achei uma tradução que me fizesse apegar ao texto =p
Então, o trecho que aparece na imagem é de Jó, Deus, o narrador do livro ou alguns dos outros personagens falando mal do diabo, que é o provocador de toda aquela situação desagradável?
Não.
Na altura desse capítulo, Deus está num longo discurso “quem é você na fila do pão?” para Jó e, depois de citar o beemote (uma criatura enorme provavelmente inspirado nos hipopótamos), criação dEle, fala do leviatã, um monstro marinho lendário que está bem acima de qualquer ser humano em poder e terror. Uma criatura tão terrível e fantástica que ”ele vê tudo que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba.“ (o mesmo trecho, na tradução ACF)
(Claro que tradições posteriores tentam relacionar o bichão com o diabo (Deus derruba vários inimigos de Israel no chamado “Dia do Senhor” em vários trechos de Isaías, o leviatã vai no pacote capítulo 27), mas o leviatã só é citado diretamente como satanás em tradições fora da Bíblia, não dentro dela. Inclusive, dependendo da trad{u/i}ção, “leviatã” pode ser traduzido como “monstro do mar” ou “crocodilo”, “grandes baleias”, “dragão” etc. É daquelas palavras velhas quanto a história, pertencentes à culturas antigas demais para a gente ter certeza exata do que a primeira pessoa que a escreveu quis dizer)
Mas, voltando, o texto não fala do diabo, mas de um kaiju ancestral :P
E, é isso: quem fez a propaganda acima fez uma citação errada do Antigo Testamento. O que se conclui que, das duas uma:
1) o texto foi escrito por quem não sabe nada, e a partir de então deve (ou deveria) ter passado por várias mãos até a aprovação. E nenhuma destas pessoas percebeu o erro... o que acho muito grave, quando o modelo de negócios da tal editora é em cima do texto bíblico. Ou...
2) a propaganda foi feita por alguém que sabia o que estava fazendo e não se importou.
E, nos dias de hoje, convenhamos, o que não falta são interpretações seletivas e descontextualizadas de textos religiosos, somadas à interpretações excessivas de elementos externos (tipo a coincidência do encontro das sílabas de “pride” e “month”) para forçar o significado de um fato (as vezes banal) para o que a pessoa quer. Para mim a imagem foi construída na má fé mesmo, e é nela que tendo a acreditar
Em tempo: os dados que dei nesse texto (sobre Leviatã, KJV e Jó, especificamente) são um resumão do muito pouco que sei, com alguma pesquisada ligeira aqui e ali. E, mesmo assim, queria dar mais alguns comentários antes de encerrar, tentarei ser breve:
1) algumas tradições dizem que o diabo caiu por orgulho (a mais explícita é de Paulo, na Primeira Epístola a Timóteo 3:6), mas é bom sempre lembrar que “orgulho” é daqueles termos amplos que abarca tanto gente se achando a última coca-cola do deserto (“soberba”) quanto pessoas trabalhando sua autoestima e autoconfiança. O primeiro significado é pra lá de combatido pelos textos bíblicos, o segundo é o mote de eventos de afirmação de minorias.
2) a Bíblia tem várias passagens homofóbicas, especialmente na lei mosaica (que tem esquisitices convenientemente esquecidas) e nas cartas de Paulo. Não vou tratar disso aqui, e duvido que alguém algum dia resolva esta questão. Mas desconfio, de leve, que quando falamos de Deus, falamos de Amor e se alguma interpretação nos faz amar menos o próximo (a ponto, sei lá, de torcer no íntimo que ele vá pro inferno) e nos transforma em fiscal de cu alheio, algumas coisa deu errado aí.
3) sobre a imagem de abertura, é óbvio que ela é uma mistura maluca de símbolos diversos tentando forçar um significado em comum à minha escolha. Assim como a tal propaganda, mas estou avisando vocês (o trecho fala do arco-íris mesmo, depois do dilúvio na história de Noé e tal). Fiz ela tendo em mente que, para divulgar esse texto, achava necessário ter uma imagem junto e era óbvio que não iria viralizar o treco que provocou esse texto, então tive de montar essa imagem que, convenhamos, tem cores melhores.
4) agora que me caiu a ficha junho será o mês do orgulho Mês do Orgulho LGBTQIA :P
E, antes que me esqueça: a imagem original é de Benson Kua, alguns direitos reservados.
Discussão