A verdadeira vocação de Michiko Akagi era:
[ ] lutar com monstros maiores que ela usando roupas overenfeitadas e luzinhas multicoloridas mágicas?
[ ] gastar preciosas horas do fim de semana ajudando no restaurante da família?
[x] se jogar na cama e só acordar meio dia, ou depois?
Infelizmente a civilização capitalista é edificada sobre um cemitério de vocações reprimidas.
Sabadou.
E apesar de não acordar tão cedo quanto nos dias de aula, tinha de pular da cama o quanto antes e contribuir pela manutenção econômica da família. Ainda estava bastante cansada da montanha-russa que fora a sexta-feira (nem treze era!), fazendo a cama estar mais gostosa do que em qualquer outra noite de sua vida, mas acordar inteira a fez achar seu quarto também o mais lindo do mundo, sua casa a mais legal do sistema solar, sua família a mais fofa da galáxia e o café da manhã o mais delicioso do universo.
- Você está bem, Mi?
Sua irmã mais velha põe a mão no pescoço para medir temperatura, só tem elas em casa no momento.
- Estou sim.
- Certeza? Cheguei ontem e você estava dormindo, mamãe falou que você passou mal no restaurante, voltou pra casa...
- Foi, mas to bem agora, acho que só devia estar gripada.
- Hmmmm... sério mesmo? Pensa bem, oportunidade grande de ficar em casa cuidando da minha fazenda - mostra o videogame portátil.
Tentador, mas tudo o que Michiko não queria era ficar sozinha em casa - até porque ela sabe que não ficaria sozinha em casa. O cansaço a dominava, mas a agitação da rotina com os pais, avós e irmãos lhe parecia mais seguro e aconchegante.
- Michiko?
- Oi?
- Você tava olhando longe, você está bem, MESMO?
No restaurante, ela sempre ficava de olho na clientela e nas mesas, e no céu lá fora. E hoje era dia de ajudar mais no caixa, brigando com a maquininha que às vezes resolvia não trabalhar ("é sábado, ninguém devia trabalhar hoje", disse um cliente bem humorado) e fazendo contas de cabeça para dar o troco corretamente, mesmo que matemática não fosse seu forte.
Era agitado, mas tudo corria bem, dentro da rotina e do esperado. Só pouco antes do meio dia que o seu dia anterior resolveu aparecer e desmanchar a ilusão de normalidade do dia de hoje.
"Você deixou ele ir embora?"
"Sim, estou bem, obrigada por perguntar, Poika. Agora sai da minha cabeça!! ò_ó"
- Moça, você me deu o troco errado.
- Ah, desculpa, me distraí.
Naquele mesmo momento, ia começar o noticiário da tarde e era a hora quando seu pai trocava de canal: "aqui é um lugar de descanso, não de passar raiva", disse uma vez. Como alguns casais vieram almoçar com os filhos, pôs em uma emissoras com desenhos e Michiko reassistiu eles enquanto trabalhava, sem prestar atenção no texto do closed caption. Mesmo sem áudio, várias das crianças meio que se aquietaram e dedicaram alguma atenção. O poder dos animes.
Não que ela fosse criticar, já tinha visto todos os que estavam passando agora, alguns mais de uma vez. Vários estavam na sua estante, em mangá. Em nihongo (que ela arranhava) e português. Agora na tela estavam os caras musculosos que atiravam raios com as duas mãos, antes deles eram os rapazes de armadura que faziam tudo por sua deusa sempre em perigo.
Uma fila de pagantes a trouxe de volta ao caixa e dessa vez não errou, inclusive vendeu alguns chocolates e sorvetes para uma família toda sem errar nas multiplicações, soma e subtração. Ainda existe quem só paga em dinheiro hoje em dia.
Ah, agora era o desenho da menina de roupa emperequetada que caça monstros e tem um bicho falante. A categoria em que ela estava filiada desde ontem.
No desenho tudo é mais seguro: a personagem sempre escapa dos raios, os vilões praticamente esperam sentados o golpe final contra eles ser recitado junto de uma longa coreografia. A menina é uma atrapalhada, mas no fim sobrevive à ela mesma e consegue encerrar tudo bem, de forma definitiva.
- Se ela morrer no primeiro episódio, a série acaba, né? - pensa alto.
- O maior superpoder dela é a benção do patrocinador.
- Ah, oi mano, não vi você chegar.
- Você não ia ver um tanque de guerra chegar, Michiko :P Está melhor?
- Tá todo mundo de babá minha hoje, é? Estou sim.
- Claro que todo mundo preocupado, você é a caçula dos filhos e dos netos. Se bobear, te pegam e guardam num potinho, você sabe.
- Pai, traz o potinho. A Michiko tá aqui!!
Alice abre a porta, puxa e esmaga a amiga em um abraço de tamanduá, praticamente em um gesto só.
- Que surpresa, menina! A Suzana está chegando, chegou o pacotão de livros que a gente encomendou!
Apesar de ser da casa, Michiko entra cautelosa, olhando cada detalhe, cada canto. Não estava sobre uma cratera desta vez, apesar de ser o mesmíssimo lugar. Cumprimenta o pai de Alice, que estava de avental na cozinha e entra no quarto da amiga, enquanto esta vai fazer algo indeterminado noutro cômodo. Aproveitando a privacidade, ela olha para os pelúcias na estante e diz baixinho "vou fingir que não te vi, sai daqui".
Os bichos estufados chacoalham com um movimento e algo de outro mundo pula da janela para o quintal. Alice pagaria fortunas para que algo assim acontecesse no quarto dela, só que com ela dentro testemunhando.
Em cima da cama, uma caixa enorme de livraria virtual, ainda lacrada. Pobre do entregador que teve de trazer aquele pacotezilla.
- Não é lindo? Teve aquele bug no sistema da livraria com descontos absurdos, às três da manhã, lembra? FO•DA•SE que ia ter prova na primeira aula, mandei mensagem para você e para a Su, e zeramos todas nossas listas de presentes.
- Só recebi o seu áudio emocionada quando acordei, desculpa. Mas não me arrependo, a minha cama era o melhor lugar do mundo aquela noite e...
- A minha também, mas a emoção de comprar um monte sem gastar nada, ah, isso não tem preço. - ouve um barulho - Ó, a minha sócia no crime acabou de chegar!
As duas vão para a porta, onde o pai de Aline já tinha colocado a outra visita para dentro.
- Ficou lindo o cabelo!! - Suzana tinha feito umas mechas roxas no cabelo crespo.
- Também achei, eu tinha de me preparar à altura do evento, né? Já abriu?
- Claro que não, te esperei para fazer o unboxing, claro, e a Michiko veio como plateia especialmente convidada!
Por muitos e barulhentos minutos, as meninas abrem a caixa, jogam o papel pardo e plástico bolha para o alto, retiram os livros, tiram fotos, trocam experiências e dicas de leitura, falam de filmes, de séries, de meninos, da escola ("não, falar da escola, não!") até que:
- Que houve, Mi? Você tá borocoxô.
- Eu to legal, Suzana...
- Fala logo, você não é de vir aqui de surpresa.
- É que - ela fica sem graça, o que ia falar soaria bobo - tive um sonho ruim, com monstros e gente morrendo...
= Ah, tadinha...
Michiko enxuga algo que sai dos olhos.
- Desculpa, é bobeira minha :/
- É não, Mi.
- Obrigada.... - agradece baixinho e continua mentindo para contar a verdade. Precisava tirar do peito. - acordei no meio da noite, com medo de perder tudo o que tenho de legal: minha família, vocês.
= Owwwwnn <3
- A gente aparecia no sonho, é?
- Tua casa explodia, Alice.
- Que.... que legal!! :P E tinha monstros, é? Como eles eram, pera. Deixa eu pegar meu caderno pra anotar....
- Hahahahah, besta.
E, depois de um abraço coletivo - a cama de Alice era resistente - e horas de conversa, daquele tipo que entra e sai em todos os assuntos possíveis sem rumo definido, Michiko volta para casa sozinha e mais leve.
Precisava desse dia, que terminava com direito à uma tarde de céu limpo e clima fresco, o horizonte em tons de ouro...
Então, ela para. Olha para o alto, acima das nuvens, bem para cima, havia algo. E uma hora, esse algo retornaria.
- Coração Ígneo, TRANSFIGURAR! - diz a chave mágica e em segundos está com roupas diferentes de antes. Queria sentir a brisa nos céus antes de ter uma conversa séria com uma capivara.